25 de janeiro de 2014

Um debate sobre Linda – Personagem da novela Amor à Vida

A novela Amor à Vida está se aproximando do fim, mas ainda tem gerado muita polêmica nas redes sociais, salas de aula e nas casas dos telespectadores. A dramaturgia escrita por Walcyr Carrasco está no ar desde o dia 20 de maio de 2013 e terá seu último capítulo exibido no dia 31 deste mês. Mesmo diante de vários temas polêmicos abordados por ela (gordofobia, homofobia, violência contra a mulher, AIDS e etc.), um em especial nos chamou atenção: Linda, uma adolescente portadora de autismo que, depois de conhecer o advogado Rafael, mudou radicalmente, chegando a desenvolver comportamentos até então nunca observados na personagem.
Antes de nos aprofundarmos na discussão, é importante expor alguns acontecimentos que ocorreram antes da Linda se “relacionar” com Rafael. Depois de pesquisar os primeiros capítulos da novela no site da emissora Globo, observamos que:

1. No primeiro episódio em que Linda aparece, ela apresenta características que englobam os três conjuntos de sintomas dos Transtornos do Espectro Autista (TEA) de acordo com o DSM IV. Na cena, ela está se balançando e movimentando o controle da televisão repetitivamente; não fixa o olhar na direção das outras pessoas; não gosta de atos que envolvam toques e possui uma comunicação verbal limitada a ecolalias.

Fonte: http://gshow.globo.com/novelas/amor-a-vida/capitulo/2013/5/27/

2. No decorrer dos capítulos aparecem cenas 
que mostram a hipersensibilidade da personagem  diante da diversidade de estímulos presentes no ambiente. Esse fato lembra o vídeo de Carly.

3. Outro capítulo mostra Linda urinando na cama da irmã.

Esses e outros fatos nos levam a acreditar que o autismo da Linda é severo, mas se assim o é, é possível uma mudança tão rápida devido ao aparecimento de uma pessoa na vida da personagem? Diante de tantos questionamentos nós procuramos na internet, blogs e reportagens sobre o assunto e achamos várias opiniões distintas de mães e pais de pessoas que possuem autismo, psicólogos de diversas abordagens e dos telespectadores da novela.  Mesmo com um elevado número de opiniões, percebemos algumas que estavam sempre presentes:

·         “Linda não tem autismo”;
·         “Há uma mistura de diferentes graus do autismo na mesma pessoa”;
·         “Linda é capaz de amar como qualquer outra pessoa”;
·     “Ao mesmo tempo em que a novela representa uma visão distorcida do TEA, abre espaço para o debate sobre o tema”.

Acredito que o que está em jogo nesta discussão não é o fato de uma pessoa portadora de autismo poder ou não namorar, pois dependendo do grau isto é possível sim, como é possível também trabalhar, cozinhar e realizar diversas outras atividades presentes no cotidiano - como pode ser visto na série de reportagens feita pelo programa Fantástico sobre o autismo. Mas o caso da Linda é diferente, desde o começo da novela fica claro que o autismo dela é severo, fica claro a falta de estimulação por parte da família, e o comportamento rígido dela só evidencia mais a quebra do seu desenvolvimento.


No decorrer das postagens deste blog mostramos a importância de certos cuidados e preparos que é preciso ter quando se tem uma pessoa autista em casa. O ambiente precisa ser preparado, a família precisa entender sobre o transtorno, a pessoa com autismo tem que ter um acompanhamento constante com uma equipe multidisciplinar. Linda não teve nada disso, a irmã dela no começo da novela a chamava de ‘bicho’, o apoio psicológico só foi procurado depois de algumas semanas da novela, durante a trama não houve nenhuma menção à terapia na infância ou no começo da adolescência, e não foi abordado na novela com quantos anos o diagnóstico da Linda foi dado. Bandim (2011) diz que:

Quanto mais precoce for o diagnóstico, mas chance tem a criança de responder aos diversos tipos de intervenções, já que quanto mais nova a criança, maior o que chamamos de plasticidade cerebral ou neuroplasticidade, definida como habilidade no curso da vida, do cérebro em reorganizar vias nervosas baseadas em novas experiências, modificando sua organização estrutural própria e seu funcionamento (ou seja, melhor possibilidade de resposta aos estímulos oriundos do tratamento e do ambiente); quanto mais tempo perdemos em proceder o diagnóstico e consequentemente, o tratamento, mas a criança vai consolidando formas de comportamentos rígidas e mais resistentes às intervenções (p.47).

Ou seja, é visivelmente errônea a maneira com que a novela retrata o transtorno, chegado até a dar uma ideia de cura. Quando começa a interagir com Rafael, Linda passa a formular frases quase instantaneamente, aprende a cozinhar, a sentir saudades, a querer abraçar e etc. Como já foi abordado, isso são ganhos que ocorrem com anos de acompanhamento com fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas, psiquiatras e outras especialidades; principalmente nos casos severos do transtorno, em que muitas vezes o portador possui a linguagem verbal bastante comprometida.
A novela também passa a ideia errada sobre a hipersensibilidade dos autistas. Uma cena mostra Rafael ensinando Linda a cozinhar, quando ele liga o liquidificador ela começa a gritar tampando os ouvidos e ele responde: Não precisa ter medo, Linda. É só um liquidificador. É um aparelho. Não vai te pegar". Instantaneamente Linda se mostra bastante tolerante ao barulho do liquidificador e termina de fazer o macarrão com Rafael. É importante deixar claro que não é medo, mas sim hipersensibilidade aos estímulos externos que os autistas possuem, ou seja, a luz é mais intensa, o som é mais alto, o toque é mais forte. No próprio site da emissora Globo a notícia aborda o sintoma associado ao medo:

Fonte: http://gshow.globo.com/novelas/amor-a-vida/Vem-por-ai/noticia/2013/12/milagre-linda-cozinha-com-rafael-e-ate-ganha-elogio-de-leila-esta-bom-mesmo.html

Em uma entrevista para o blog Feminismo sem Demagogia, Raquel Ribeiro Bittencourt, mãe de um autista de 28 anos, diz:

A atriz que vive a Linda na novela, Bruna Linsmayer, fez a composição do personagem na nossa associação (Associação caminhos para Vida-ACV- em Florianópolis). O autor construiu um personagem absolutamente fictício. Autistas não são assim, embora exista uma modulação da manifestação do autismo de uma pessoa para outra que compromete mais ou menos a sua capacidade de interagir. Os autistas tem muita dificuldade de estabelecer uma conversação fluente, lógica, coerente com o contexto em que ocorre. Na maioria das vezes, a fala é desconectada, pois a sua percepção da realidade é muito diferente. Vejo que o rapaz que se apaixona por ela, está encantado com a sua beleza apenas. Autista como retratado na novela, só em novela.

Entrevista completa:


Na última semana, Linda e Rafael se beijaram e a sua mãe, que sempre foi superprotetora, o denunciou por abuso de incapaz. Desde a prisão do rapaz, Linda regrediu, voltando a ser como no começo da novela, ou seja, voltou a ter as características do autismo severo (de uma hora para a outra). Com medo de que sua filha volte a “estar presa dentro de si” Neide, mãe de Linda, pede desculpas a Rafael e pede para que ele volte a ver Linda, ele volta e advinha? Linda, na mesma hora, fala, toca, chora, diz que ele é importante e termina a cena fazendo um discurso que dizia mais ou menos assim:

“Socorro! A vida toda presa dentro do meu corpo, barulho dói, as luzes doem, eu o tempo toda presa dentro de mim. Tem uma parede de vidro entre eu e vocês, eu ouvia vocês, mas as vozes não entravam dentro de mim, o sentido das coisas não entravam, eu presa dentro de mim! Mas ai chegou o Rafael e o Rafael quebrou a parede; o Rafael deu tempo para a Linda, deu tempo para a Linda existir, estendeu a mão lá no fundo e me trouxe para cá, me trouxe para fora. As vezes e não controlo meu corpo, as palavras, as vozes, não consigo controlar. Eu não sou a pessoa mais fácil do mundo, mãe, pai a Linda sabe que não é fácil. Mãe eu só existo com cuidado, não deixa o Rafael ir embora, eu não quero ficar presa dentro de mim!”



Pois é, a Linda passou de um grau severo do espectro autista para uma quase cura. No discurso, a personagem mostra um grande entendimento sobre seu problema, usa várias metáforas, algo raro até no Asperger (grau leve do espectro), sabe falar claramente sobre os seus sentimentos e mantém um diálogo coerente o tempo todo. Esses fatos não condizem com a realidade!
Mesmo sabendo que a novela é ficção, ela diz relatar a vida real e é usada como dispositivo de informações para muitas pessoas. Logo, torna-se um instrumento perigoso para quem não conhece o autismo, ao propagar ideias distorcidas, encobrindo a gravidade do que realmente é o transtorno. É preciso  deixar claro que o autismo é um transtorno complexo que precisa ser analisado com mais cuidado, e que a evolução de cada caso, deverá ser compreendida e trabalhada ao longo do tempo da história individual de cada sujeito que o possui. 


Referências:
BANDIM, J. M. Autismo: Uma abordagem prática. Recife: Bagaço, 2011.

GADIA, C. A.; TUCHMAN, R.; ROTTA, N. T. Autismo e doenças invasivas de desenvolvimento. Jornal de Pediatria, v.80, n.2, p.83-94, 2004. 

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