A novela Amor à Vida está se aproximando do fim, mas
ainda tem gerado muita polêmica nas redes sociais, salas de aula e nas casas
dos telespectadores. A dramaturgia escrita por Walcyr
Carrasco está no ar desde o dia 20 de maio de 2013 e terá seu último capítulo
exibido no dia 31 deste mês. Mesmo diante de vários temas polêmicos abordados
por ela (gordofobia, homofobia,
violência contra a mulher, AIDS e etc.), um em especial nos chamou atenção: Linda, uma
adolescente portadora de autismo que, depois de conhecer o advogado Rafael,
mudou radicalmente, chegando a desenvolver comportamentos até então nunca
observados na personagem.
Antes de nos aprofundarmos na discussão,
é importante expor alguns acontecimentos que ocorreram antes da Linda se
“relacionar” com Rafael. Depois de pesquisar os primeiros capítulos da novela
no site da emissora Globo, observamos que:
1. No
primeiro episódio em que Linda aparece, ela apresenta características que
englobam os três conjuntos de sintomas dos Transtornos do Espectro Autista
(TEA) de acordo com o DSM IV. Na cena, ela está se balançando e movimentando o controle
da televisão repetitivamente; não fixa o olhar na direção das outras pessoas; não gosta de atos que envolvam toques e possui uma comunicação verbal limitada a
ecolalias.
Fonte: http://gshow.globo.com/novelas/amor-a-vida/capitulo/2013/5/27/ |
2. No decorrer dos capítulos aparecem cenas que mostram a hipersensibilidade da personagem diante da diversidade de estímulos presentes no ambiente. Esse fato lembra o vídeo de Carly.
3. Outro
capítulo mostra Linda urinando na cama da irmã.
Esses e outros fatos nos levam a acreditar que o autismo
da Linda é severo, mas se assim o é, é possível uma mudança tão rápida devido
ao aparecimento de uma pessoa na vida da personagem? Diante de tantos
questionamentos nós procuramos na internet, blogs e reportagens sobre o assunto
e achamos várias opiniões distintas de mães e pais de pessoas que possuem autismo, psicólogos de
diversas abordagens e dos telespectadores da novela. Mesmo com um elevado número de opiniões,
percebemos algumas que estavam sempre presentes:
·
“Linda
não tem autismo”;
·
“Há
uma mistura de diferentes graus do autismo na mesma pessoa”;
·
“Linda
é capaz de amar como qualquer outra pessoa”;
· “Ao
mesmo tempo em que a novela representa uma visão distorcida do TEA, abre espaço
para o debate sobre o tema”.
Acredito que o que está em jogo nesta discussão não é o
fato de uma pessoa portadora de autismo poder ou não namorar, pois dependendo
do grau isto é possível sim, como é possível também trabalhar, cozinhar e realizar diversas outras atividades presentes no cotidiano - como pode ser visto na série de reportagens feita pelo programa Fantástico sobre o autismo. Mas o caso da Linda
é diferente, desde o começo da novela fica claro que o autismo dela é severo,
fica claro a falta de estimulação por parte da família, e o comportamento
rígido dela só evidencia mais a quebra do seu desenvolvimento.
No decorrer das postagens deste blog mostramos a
importância de certos cuidados e preparos que é preciso ter quando se tem uma
pessoa autista em casa. O ambiente precisa
ser preparado, a família precisa entender sobre o transtorno, a pessoa com
autismo tem que ter um acompanhamento constante com uma equipe
multidisciplinar. Linda não teve nada disso, a irmã dela no começo da novela a
chamava de ‘bicho’, o apoio psicológico só foi procurado depois de algumas
semanas da novela, durante a trama não houve nenhuma menção à terapia na infância ou no
começo da adolescência, e não foi abordado na novela com quantos anos o
diagnóstico da Linda foi dado. Bandim (2011) diz
que:
Quanto mais precoce for o diagnóstico,
mas chance tem a criança de responder aos diversos tipos de intervenções, já
que quanto mais nova a criança, maior o que chamamos de plasticidade cerebral
ou neuroplasticidade, definida como habilidade no curso da vida, do cérebro em
reorganizar vias nervosas baseadas em novas experiências, modificando sua
organização estrutural própria e seu funcionamento (ou seja, melhor
possibilidade de resposta aos estímulos oriundos do tratamento e do ambiente);
quanto mais tempo perdemos em proceder o diagnóstico e consequentemente, o
tratamento, mas a criança vai consolidando formas de comportamentos rígidas e
mais resistentes às intervenções (p.47).
Ou seja, é visivelmente errônea a
maneira com que a novela retrata o transtorno, chegado até a dar uma ideia de
cura. Quando começa a interagir com Rafael, Linda passa a formular frases quase
instantaneamente, aprende a cozinhar, a sentir saudades, a querer abraçar e etc. Como já
foi abordado, isso são ganhos que ocorrem com anos de acompanhamento com fonoaudiólogos,
psicólogos, fisioterapeutas, psiquiatras e outras especialidades; principalmente nos casos severos do transtorno, em que muitas vezes o portador possui a linguagem verbal bastante comprometida.
A novela também passa a ideia errada
sobre a hipersensibilidade dos autistas. Uma cena mostra Rafael ensinando Linda
a cozinhar, quando ele liga o liquidificador ela começa a gritar tampando os
ouvidos e ele responde: “Não precisa ter
medo, Linda. É só um liquidificador. É um aparelho. Não vai te pegar". Instantaneamente Linda se mostra bastante tolerante ao barulho do liquidificador e termina de fazer o macarrão com
Rafael. É importante deixar claro que não é medo, mas sim hipersensibilidade
aos estímulos externos que os autistas possuem, ou seja, a luz é mais intensa, o som é mais alto, o
toque é mais forte. No próprio site da emissora Globo a notícia aborda o
sintoma associado ao medo:
Fonte: http://gshow.globo.com/novelas/amor-a-vida/Vem-por-ai/noticia/2013/12/milagre-linda-cozinha-com-rafael-e-ate-ganha-elogio-de-leila-esta-bom-mesmo.html
Em uma entrevista para o blog
Feminismo sem Demagogia, Raquel Ribeiro Bittencourt, mãe de um autista de 28 anos, diz:
A atriz que vive a Linda na novela, Bruna
Linsmayer, fez a composição do personagem na nossa associação (Associação
caminhos para Vida-ACV- em Florianópolis). O autor construiu um personagem
absolutamente fictício. Autistas não são assim, embora exista uma modulação da
manifestação do autismo de uma pessoa para outra que compromete mais ou menos a
sua capacidade de interagir. Os autistas tem muita dificuldade de estabelecer
uma conversação fluente, lógica, coerente com o contexto em que ocorre. Na
maioria das vezes, a fala é desconectada, pois a sua percepção da realidade é
muito diferente. Vejo que o rapaz que se apaixona por ela, está encantado com a
sua beleza apenas. Autista como retratado na novela, só em novela.
Entrevista completa:
Na última semana, Linda e Rafael se
beijaram e a sua mãe, que sempre foi superprotetora, o denunciou por abuso de
incapaz. Desde a prisão do rapaz, Linda regrediu, voltando a ser como no começo
da novela, ou seja, voltou a ter as características do autismo severo (de uma
hora para a outra). Com medo de que sua filha volte a “estar presa dentro de si”
Neide, mãe de Linda, pede desculpas a Rafael e pede para que ele volte a ver
Linda, ele volta e advinha? Linda, na mesma hora, fala, toca, chora, diz que
ele é importante e termina a cena fazendo um discurso que dizia mais ou menos
assim:
“Socorro! A vida toda presa dentro do meu corpo, barulho
dói, as luzes doem, eu o tempo toda presa dentro de mim. Tem uma parede de
vidro entre eu e vocês, eu ouvia vocês, mas as vozes não entravam dentro de
mim, o sentido das coisas não entravam, eu presa dentro de mim! Mas ai chegou o
Rafael e o Rafael quebrou a parede; o Rafael deu tempo para a Linda, deu tempo
para a Linda existir, estendeu a mão lá no fundo e me trouxe para cá, me trouxe
para fora. As vezes e não controlo meu corpo, as palavras, as vozes, não
consigo controlar. Eu não sou a pessoa mais fácil do mundo, mãe, pai a Linda
sabe que não é fácil. Mãe eu só existo com cuidado, não deixa o Rafael ir
embora, eu não quero ficar presa dentro de mim!”
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Pois é, a Linda
passou de um grau severo do espectro autista para uma quase cura. No discurso,
a personagem mostra um grande entendimento sobre seu problema, usa várias
metáforas, algo raro até no Asperger (grau leve do espectro), sabe falar
claramente sobre os seus sentimentos e mantém um diálogo coerente o tempo todo.
Esses fatos não condizem com a realidade!
Mesmo sabendo que
a novela é ficção, ela diz relatar a vida real e é usada como dispositivo de
informações para muitas pessoas. Logo, torna-se um instrumento perigoso para quem
não conhece o autismo, ao propagar ideias distorcidas, encobrindo a gravidade do que realmente é o transtorno. É preciso deixar claro que o autismo é um transtorno complexo que precisa ser analisado com mais cuidado, e que a evolução de cada caso, deverá ser compreendida e trabalhada ao longo do tempo da história individual de cada sujeito que o possui.
Referências:
BANDIM, J. M. Autismo:
Uma abordagem prática. Recife: Bagaço, 2011.
GADIA, C. A.; TUCHMAN, R.; ROTTA,
N. T. Autismo e doenças invasivas de desenvolvimento. Jornal
de Pediatria, v.80, n.2, p.83-94, 2004.
Outras
reportagens:
Maravilhoso texto!
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